segunda-feira, maio 31, 2004

Conflito de sentimentos

Ontem cobri, pela primeira vez, uma rebelião de presos. Foi na recém-inaugurada Casa de Custódia de Benfica, que abriga cerca de 900 detentos à espera dejulgamento. Cheguei no local às 9h e lá já estavam dezenas de mulheres: esposas, irmãs,namoradas e mães dos acusados. Como era o segundo dia de rebelião, muitas tinham passado a noite em uma pracinha em frente ao presídio à espera de notícias.
O que mais me impressionou foi o poder de comunicação dos que estavam amotinados na casa de custódia com seus familiares. As mulheres gritavam do lado de fora e eles respondiam lá de dentro. Como pode? Nunca pensei que isso fosse possível. E pior, pessoas ligavam de um orelhão para os celulares dos presos. São os aparelhos que nos roubam nas ruas e chegam clandestinamente às casas de detenção.
Bom, ao longo do dia a gente passa por uma confusão de sentimentos. O primeiro é a raiva daquelas mulheres, ignorantes, mal-encaradas ali na frente, como se elas próprias e não só seus companheiros fossem bandidos. Elas absorvem o mesmo jeito e falam com a mesma agressividade de um criminoso. Exigiam direitos humanos aos seus familiares, como se aquelas pessoas presas tivessem respeitado os direitos dos que mataram, roubaram ou estupraram. Em um primeiro momento, você não está nem aí para os rebelados. Se morrerem, fazem um favor à sociedade.
Depois, com um olhar mais cuidadoso, você vê mães. São mulheres pobres, sofridas, que não têm culpa do que seus filhos fizeram, nem concordam com seus atos, mas os defendem. Temem por suas vidas como se fossem pequenos garotos indefesos. Sem comer, sem dormir, elas fazem uma vigília sem fim como se assim impedissem que algo de mal aconteça com eles. Aí a gente se compadece, sente pena daquelas pessoas. Dá até vontade de chorar com elas e por elas.
Dali em diante, é só a sensação de medo e angústia. A gente começa a enxergar por perto também os familiares de reféns. São sobrinhos e filhos de agentes penitenciários que foram pegos pelos presos e estão com a vida por um fio. Eles também sofrem pelos seus. É de partir o coração ouvir uma moça dizendo que o tio, viúvo, era policial reformado que voltou a trabalhar para fazer segurança do presídio. Mas um detalhe: quando estava na ativa era PM lotado no Hospital Central da Polícia Militar e desempenhava a função de técnico de raio-X, ou seja, o cara nunca participou de um conflito na rua, como a maioria dos PMs. É mais uma vítima do sistema, que está todo errado.
Ao mesmo tempo em que a gente torce para que tudo acabe logo, que a polícia invada, prenda os líderes da rebelião, solte os reféns e tudo volte à rotina, vem à cabeça o exemplo do Carandiru. Um presídio paulista onde policiais truculentos, autorizados pelo governador do estado, invadiram a unidade mesmo com uma rebelião praticamente controlada e mataram desordenadamente 111 presos. Uma chacina de proporções alarmantes em que bandidos ficaram acuados, sendo mordidos por cães e metralhados sem nenhuma chance de defesa, amontoados uns por cima dos outros, nus e com sangue de muitos aidéticos escorrendo por todos os lados. Um horror!!!
Realmente, o dia hoje foi uma lição tanto profissional como humana. Aprendi que não há uma verdade, mas que há lados de uma sociedade ignorante, doente e desordenada. Um estado ausente, o crime organizado e muita gente sendo absorvida por esse submundo. Crianças desde cedo vendo pais presos, convivendo com a rotina dos presídios, invertendo valores. Triste, muito triste! O que nos resta é tentar fazer algo por este país e acreditar que Deus sabe o que faz.

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