quarta-feira, outubro 13, 2010

Sobre as nossas crianças

Este texto é de Martha Medeiros. Como sempre, bem interessante.

Sua majestade, a criança


Tem se falado muito na falta de limites das crianças de hoje. A garotada manda e desmanda nos pais e estes, sentindo-se culpados pelo pouco tempo que ficam em casa, aceitam a troca de hierarquia – hoje os adultos é que recebem ordens e reprimendas, e não demora serão colocados de castigo.
Segundo os pedagogos, precisamos voltar a dizer não para a pirralhada. É a ausência do não que faz com que meninas saiam de madrugada sem avisar para onde estão indo, garotos peguem o carro do pai sem ter habilitação e todos sejam estimulados a consumir descontroladamente, a não dar explicações e a viver sem custódia. Mas onde encontrar energia para discutir com filho? Pai e mãe se jogam no sofá e pensam: “Façam o que bem entender, desde que nos deixem quietos vendo a novela”.
Alguns adultos defendem-se dizendo que é impossível dar limites, vigiar e orientar, tendo que sair de manhã para o batente e voltar à noite demolidos pelo cansaço. Compreendo, é complicado mesmo. Se existe uma liberalidade e agressividade maior hoje entre as crianças, é claro que o fato de as mulheres terem entrado no mercado de trabalho e deixado em aberto o posto de rainhas do lar tem algo a ver com isso. Mas nem me passa pela cabeça estimular um meia-volta, volver. A sociedade avançou com a participação das mulheres e esse é um caminho sem retorno. O que compromete o destino de uma criança é não ter sido amada. E muitas não foram, mesmo com os pais por perto.
A falta de amor é a origem de grande parte das neuroses, psicoses e desvios de conduta. Uma criança que não se sentiu amada pode cometer erros de avaliação sobre si própria e cometer desvarios para alcançar uma autoestima que está sempre fora de alcance.
Não adianta o pai e a mãe passarem a mão na cabeça do filhote de vez em quando e repetir um “eu te amo” automático. A criança precisa se sentir amada de verdade, e as demonstrações não se dão apenas com beijos e abraços, e tampouco com proibições sem justa causa. O “não deixo, não pode” tem que ser argumentado. “Não deixo e não pode porque….” Tem que gastar o latim. Explicar. E prestar atenção no filho, controlar seus hábitos, perceber seus silêncios, demonstrar interesse pelo que ele faz, pelo que ele pensa, quem são seus amigos, quais suas aptidões, do que ele se ressente, o que está calando, por que está chorando, se sua rebeldia é uma maneira de pedir socorro, se está precisando conversar, se o que tem sentido é demasiado pesado pra ele, se precisa repartir suas dores, se está sendo bem acolhido pela escola, se não estão exigindo dele mais do que ele pode dar, se não foram transferidas responsabilidades para ele que são incompatíveis com sua idade, se há como entender e aceitar seus desejos, se ele está arriscando a própria vida e precisa de freio, se estamos deixando ele sonhar alto demais, se estamos induzindo que ele sonhe de menos, se ele está recebendo os estímulos certos ou desenvolvendo preconceitos generalizados. Dá uma trabalheira, mas isso é amar.
Algumas crianças são criadas por empregadas, ou seja, são terceirizadas e depois o psiquiatra que junte os cacos. Com amor, ao contrário, toda criança sente-se ilustríssima, majestade, vossa excelência, sem fazer mau uso do cargo. Será confiante e segura como um rei, não se violentará para agradar os outros (usando drogas ou imitando o que os outros fazem para ser aceita num grupo). Será o que é, afinada com o próprio eixo. E se transformará num adulto bem resolvido, porque a lembrança da infância terá deixado nela a dimensão da importância que ela tem.
(por Martha Medeiros, publicado no jornal Zero Hora/RS em 11/outubro/2009)

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